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Publicado em 09/03/2023 20:59:30

Comer comida queimada faz mal à saúde?

Aquele hábito de raspar os pedaços queimados da sua torrada pode não ser uma ideia tão ruim assim
Você costuma raspar os pedaços queimados da sua torrada? (Foto: Reprodução)

É muito provável que você mantenha até hoje, talvez sem perceber, alguns dos hábitos de comer e cozinhar que aprendeu com adultos quando era jovem.

Talvez você nunca tenha lambido comida da faca, por exemplo, ou tenha o costume de jogar sal sobre seus ombros para afastar os maus espíritos.

Muitos desses hábitos estranhos provavelmente são apenas superstições, mas existe um costume em particular que pode ter sido profético algumas décadas atrás. Afinal, ele se baseia em uma descoberta científica que ainda não havia ocorrido.

Foi apenas em 2002 que cientistas da Universidade de Estocolmo, na Suécia, descobriram que pode realmente ser aconselhável raspar os pedaços queimados da sua torrada.

Eles descobriram que uma substância chamada acrilamida forma-se quando aquecemos certos alimentos – incluindo batatas, pão, biscoitos, cereais e café – a mais de 120°C e o açúcar dos alimentos reage com o aminoácido asparagina. Este processo é conhecido como a reação de Maillard, que faz com que o alimento adquira a coloração marrom e gere aquele sabor característico de "coisa queimada".

Os cientistas descobriram que a acrilamida é carcinogênica nos animais, ainda que em doses muito mais altas que as dos alimentos humanos.

A acrilamida também pode aumentar o risco de câncer em seres humanos, especialmente em crianças, segundo a Autoridade Europeia de Segurança Alimentar. Mas os pesquisadores que estudam seus efeitos em seres humanos ainda não conseguiram chegar a uma conclusão definitiva.

"Quase 30 anos depois da sua classificação como 'provável carcinogênico humano', as evidências da sua real carcinogenicidade nas pessoas ainda são inconsistentes. Se continuarmos fazendo novos estudos em seres humanos, poderemos ter dados apropriados para alterar a classificação da acrilamida para 'carcinogênico humano'", afirma Fatima Saleh, professora de ciências médicas de laboratório da Universidade Árabe de Beirute, no Líbano.

O que os cientistas sabem ao certo é que a acrilamida é neurotóxica para os seres humanos, o que significa que ela pode afetar o sistema nervoso. A causa exata ainda não é totalmente compreendida, mas uma das teorias é que a acrilamida ataca proteínas estruturais nas células nervosas ou pode inibir sistemas anti-inflamatórios que protegem as células nervosas contra lesões.

Já se demonstrou que os efeitos tóxicos da acrilamida são cumulativos. Isso significa que consumir pequenas quantidades de acrilamida por um longo período de tempo pode aumentar o risco de que ela prejudique órgãos com o passar do tempo.

Mais especificamente, evidências de estudos com animais sugerem que a exposição de longo prazo a acrilamida na alimentação também pode aumentar o risco de doenças neurodegenerativas, como a demência. E ela também pode estar associada a distúrbios do neurodesenvolvimento em crianças, segundo Federica Laguzzi, professora de epidemiologia nutricional e cardiovascular do Instituto de Medicina Ambiental do Instituto Karolinska, na Suécia.

"A acrilamida atravessa todos os tecidos, incluindo a placenta, porque tem baixo peso molecular e é solúvel em água", explica Laguzzi. A professora encontrou relação entre a maior ingestão de acrilamida por mulheres grávidas e menor peso, circunferência da cabeça e comprimento dos bebês na hora do parto.

O possível mecanismo que leva a acrilamida a aumentar o risco de câncer em seres humanos ainda é desconhecido. Mas o professor de epidemiologia Leo Schouten, da Universidade de Maastricht, na Holanda, tem uma teoria sobre por que isso pode acontecer.

Depois que cientistas suecos descobriram a presença de acrilamida na alimentação humana em 2002, a Autoridade Alimentícia Holandesa entrou em contato com pesquisadores do Estudo de Coorte Holandês sobre Alimentação e Câncer, do qual Schouten faz parte, para investigar se a acrilamida na alimentação traria riscos para seres humanos.

Schouten e seus colegas tentaram então formular uma estimativa da quantidade de acrilamida consumida pelas pessoas, com base em um questionário.

Eles descobriram que a variação entre as pessoas com alta e baixa exposição em uma população de holandeses idosos pode ser explicada principalmente por um produto popular na Holanda – o "ontbijtkoek", algo como "bolo do café da manhã". Ele é extremamente rico em acrilamida, devido ao bicarbonato de sódio utilizado na sua produção.

Os pesquisadores investigaram a relação entre a ingestão de acrilamida por não fumantes (já que o cigarro também contém a substância) e todos os tipos de câncer e encontraram risco mais alto de câncer do ovário e endométrio em mulheres com alta exposição à acrilamida. E também encontraram, em outros estudos, uma leve correlação entre a ingestão de acrilamida e câncer renal.

Mas estas descobertas ainda aguardam confirmação por outros pesquisadores. O estudo mais próximo foi realizado nos Estados Unidos e suas conclusões, publicadas em 2012, indicam aumento do risco de câncer do ovário e endométrio entre mulheres pós-menopausa não fumantes que consumiram altas quantidades de acrilamida.

É claro que pode haver outras razões – pessoas que comem altos níveis de acrilamida também podem fazer outras opções de estilo de vida que as coloquem em risco mais alto.

Outros estudos não encontraram associação ou encontraram associação mais fraca. Mas não está claro se a relação encontrada por Schouten e sua equipe era incorreta ou se outros estudos não conseguiram medir a ingestão de acrilamida com precisão.

Schouten explica que o mecanismo por trás do possível efeito causador de câncer da acrilamida pode estar relacionado aos hormônios, já que certos hormônios foram associados ao aumento do risco de câncer, especialmente câncer genital feminino, como o câncer do endométrio e do ovário.

"A acrilamida pode afetar o estrogênio ou a progesterona, o que explicaria o câncer feminino, mas ainda não há comprovação a respeito", afirma o professor.

Estudos de laboratório com ratos também encontraram relações entre a ingestão de acrilamida e câncer nas glândulas mamárias, na glândula tireoide, nos testículos e no útero, o que também sugere um processo hormonal. Mas isso não significa necessariamente que os riscos sejam similares em seres humanos.

 

Mais estudos

Em 2010, o Comitê Conjunto de Especialistas sobre Aditivos Alimentares da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) sugeriu que mais estudos de longo prazo são necessários para compreender melhor a relação entre a acrilamida e o câncer. O Comitê apoia os esforços para reduzir os níveis de acrilamida nos alimentos.

Mas um dos maiores desafios é medir com precisão a quantidade de acrilamida que nós consumimos.

"É bem aceito que a acrilamida é genotóxica e pode causar câncer em animais, mas a associação entre acrilamida e câncer em seres humanos ainda é incerta", afirma Laguzzi.

"A maioria dos estudos epidemiológicos é realizada com ingestão de acrilamida medida por meio de questionários sobre a alimentação que dependem do relato das pessoas, o que pode interferir nos resultados", explica a professora.

Embora Schouten acredite ter conseguido medir com precisão a acrilamida na alimentação das pessoas, nem todos concordam, incluindo vários toxicólogos. Outra forma de avaliar a ingestão de acrilamida é medir os biomarcadores na urina e no sangue, mas também não se encontrou nada de concreto desta forma, segundo ele.

É importante ter mais pesquisas, com a acrilamida medida com biomarcadores, especialmente no sangue, que demonstra a ingestão de acrilamida por um período de tempo mais longo do que a urina, segundo Laguzzi.

A acrilamida já foi medida por biomarcadores em estudos americanos, mas apenas muito recentemente. Um estudo de 2022, utilizando dados que cobrem uma década, demonstra relação entre a ingestão de acrilamida e mortes por câncer, mas não conseguiu concluir quais tipos da doença.

Uma razão que talvez explique por que não existem muitas evidências conclusivas de que os níveis de acrilamida na alimentação podem aumentar o risco de câncer é porque podemos ter medidas de proteção. no corpo, que limitam os riscos maiores causados por nossas eventuais batatas fritas mais queimadas.

Laguzzi não encontrou relação entre o risco de câncer não ginecológico e a ingestão de acrilamida na sua pesquisa feita em evidência populacional dessa associação. Ela afirma que o motivo pode ser porque os seres humanos têm bons mecanismos de reparação para ajudar a prevenir possíveis efeitos carcinogênicos e neurotóxicos ou porque esses estudos foram realizados utilizando medidas imprecisas de exposição à acrilamida alimentar.

"Além disso, nós não comemos acrilamida sozinha", ressalta Laguzzi. "Ela está nos alimentos, onde também pode haver outros componentes, como antioxidantes, que podem ajudar a prevenir os mecanismos tóxicos."

 

Medidas de redução

Apesar da ausência de pesquisas sólidas que demonstrem os riscos da ingestão de acrilamida aos seres humanos, a indústria alimentícia está tomando medidas para reduzir a substância nos seus produtos.

"A União Europeia está em processo de definir os níveis máximos permitidos para acrilamida nos alimentos, o que poderá ter sérias repercussões para a cadeia de fornecimento", afirma o pesquisador Nigel Halford. Suas pesquisas estão ajudando agricultores a reduzir o potencial de formação de acrilamida em produtos preparados com trigo.

A acrilamida não é encontrada nas plantas, mas sim a asparagina, que é a substância que se transforma em acrilamida durante o aquecimento. "A acrilamida afeta uma ampla variedade de alimentos produzidos com cereais, de forma que é muito importante para a indústria alimentícia", afirma ele.

Os grãos de trigo acumulam muito mais asparagina do que o necessário e, aparentemente, o acúmulo é maior quando eles não têm todos os nutrientes necessários, especialmente enxofre, segundo Halford. O pesquisador está tentando suprimir este processo geneticamente, usando o método de edição genética Crispr.

No outro lado da cadeia de fornecimento, muitos produtores vêm sendo incentivados a reduzir, quando possível, o teor de acrilamida dos seus produtos, especialmente em alimentos para bebês.

Leo Schouten conta que esta iniciativa tem tido sucesso. Ele ficou feliz ao saber que o bolo de café da manhã holandês ontbijtkoek agora tem cerca de 20% da acrilamida que costumava ter, agora que foi alterada a sua forma de produção.

Fatima Saleh afirma que também existem formas de reduzir o teor de acrilamida em casa, durante a preparação dos alimentos. Segundo ela, por exemplo, mergulhar batatas cortadas em água quente por 10 minutos antes de fritá-las pode reduzir a formação de acrilamida em quase 90%.

Federica Laguzzi destaca que o interesse científico pelos riscos da acrilamida à saúde cresceu novamente nos últimos anos. Ela afirma que será um processo longo, mas espera que, em alguns anos, a eventual relação entre a ingestão de acrilamida e o risco de câncer fique mais clara.

Enquanto isso, aquele hábito de raspar os pedaços queimados da sua torrada pode não ser uma ideia tão ruim assim.

Fonte: Jessica Bradley Role / BBC Future
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