Conselho Nacional de Justiça adiou análise sobre se prática pode continuar sendo empregada no Judiciário. Para entidades, "teoria" é patriarcal e expõe vítimas ao constrangimento
Há pelo menos uma década, a Justiça brasileira vem empregando a constelação familiar — técnica sem respaldo científico e criticada por psicólogos (entenda mais abaixo) — para resolver especialmente casos nas Varas da Família. Juízes recomendam, por exemplo, que os envolvidos no processo participem dessa "dinâmica" antes das audiências.
Contexto: Proibir ou continuar permitindo que o Judiciário use a constelação familiar na tomada de decisões? A discussão estava na pauta no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na semana passada e acabou adiada. Diante do recesso no Judiciário, o colegiado só deve voltar a se reunir em fevereiro de 2024.
A favor x contra: De um lado, há os defensores da prática, que a veem como uma aliada na mediação de conflitos. Do outro, estão entidades como o Conselho Federal de Psicologia, que já emitiu uma nota técnica contrária ao emprego dessas "dinâmicas" no Judiciário.
Mas o que é constelação familiar? Em resumo, é uma prática criada pelo alemão Bert Hellinger (1925-2019) para resolver conflitos familiares, principalmente entre casais ou entre pais e filhos. Em geral, em sessões únicas, que podem ser em grupo ou individuais, são recriadas cenas que despertam sentimentos a respeito da família.
O paciente, coordenado pelo "constelador", pode contracenar com outras pessoas ou com objetos (pedras, bonecos). Segundo o site de Hellinger, espera-se que, ao longo da dinâmica, "crenças ocultas venham à luz", e o "constelado" entenda seu papel na família e as origens de seu problema (seja um relacionamento abusivo, uma agressão ou um desentendimento com o filho adolescente). Os efeitos vão depender do quanto a pessoa está "aberta" para o processo.
A teoria de Hellinger é regida por três "Leis do Amor", criticadas pelo Conselho Federal de Psicologia por reforçar estruturas patriarcais de família, diminuir o papel da mulher e naturalizar as desigualdades de gênero (leia mais abaixo).
1- Lei do Pertencimento - Afirma que todos os membros da família têm direito a pertencer ao sistema (mesmo os mortos ou os que se afastaram dos demais).
"Quando, porém, os membros remanescentes reconhecem os excluídos como pertencentes à família, o amor e o respeito compensam a injustiça que foi cometida contra eles, e seus destinos não precisam ser repetidos. É isso que chamamos aqui de solução", escreveu Hellinger.
"Quando a lei é descumprida, há na família a necessidade de compensação dessa exclusão; assim, uma futura geração assumirá, de forma inconsciente, sintomas que expressarão o emaranhamento produzido pela exclusão do membro do sistema".
2- Lei da Ordem ou Hierarquia - Prega que é preciso reconhecer o lugar tradicional de cada membro da família (mesmo daquele que foi substituído). Por exemplo: segundo Hellinger, o pai biológico vem antes do pai adotivo.
Há também o ensinamento de que os filhos devem ser eternamente gratos aos pais por terem recebido deles a vida. "Tudo vai melhor quando os filhos são filhos e os pais são pais”, afirmou o criador da prática.
3- Lei do Equilíbrio - Estabelece que todos os membros precisam se sentir em equilíbrio para que haja harmonia.
"A mulher deve seguir o homem (em sua família, em seu nome, em seu lugar de trabalho, em seu país…), e o homem deve servir o feminino [ao proteger a esposa]", disse Hellinger.
Segundo a nota técnica do Conselho Federal de Psicologia e o documento enviado por pesquisadores ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, não há um padrão na forma como a constelação familiar é usada no Judiciário. Além disso, há os seguintes problemas:
Não há respaldo científico - A partir das Leis do Amor, é possível notar, afirma o conselho que a teoria "adota uma concepção de casal e família de bases patriarcais, calcada na heterossexualidade compulsória, que tende a naturalizar a desigualdade de gênero em relações conjugais e familiares". Ou seja: as mulheres são inferiorizadas em relação aos homens, por exemplo.
Ao se apegar a vínculos familiares tradicionais, a constelação despreza aspectos históricos, sociais e políticos que vão além das relações originais entre os entes. Ela não considera as configurações familiares criadas a partir do afeto (e não da biologia).
O pai/marido é sempre colocado como superior ao restante da família, e as crianças e jovens não têm seus direitos garantidos, já que são fortemente marcados pela inferioridade em relação a seus pais.
Mulheres vítimas de violência, quando expostas à dinâmica da constelação familiar pela Justiça, podem se sentir ainda mais inseguras. "Denota-se, nestes casos, que não há uma situação de igualdade entre vítima e agressor, com vistas a um diálogo e ao estabelecimento de um acordo. A técnica, neste contexto, acaba por mobilizar a vítima para um acordo em uma situação adversa e de fragilidade", afirma a nota do CFP.
A prática pode desestruturar o participante, sem que o Judiciário garanta o devido suporte emocional depois da sessão.